21 março 2010

(setor de diversões sul, DF)


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"A história não queria sair, mas eu dei uns golpes nela e a deixei mansinha".

Foi isso que ele me disse quando chegou, segurando a resma de folhas e me oferecendo como se fosse um presente, ou como se fosse o jornal de hoje cheio de notícias boas. Passei os olhos pelos cantos, dando um suspiro e perguntando a mim mesmo se isso era realmente necessário, afinal, mais um escritorzinho de merda não iria ajudar nas vendas da revista, que aliás, eu acreditei desde o princípio que não iria passar do número dez e, vejam só, esta seria a décima edição quinzenal. Queríamos mesmo que a revista fosse adiante, apesar do pessimismo, e por isso tentamos o tal do Abreu de São Paulo, tentamos o Bohr daqui do DF, mas nenhum deles quer associar o seu nome à merda de uma revista sem prestígio. Aliás, até associariam, mas o preço não caberia de forma alguma dentro do nosso orçamento de editora que tem como sede uma sala alugada no Setor de Diversões Sul, do lado do bueiro de mármore que eles chamam de Rodoviária de Brasília.


Aquele jovem me parecia ridículo ali, de pé, com sua mochila jeans nas costas, bem reto e com o sorrisinho arrogante como todos os outros da mesma idade, aliás, acho que por trás do sorriso era fácil perceber a cara derrotada de quem não passou bem a noite, ou talvez dos que acordam cedo demais. Talvez só estivesse drogado, isso mesmo, talvez a sua falta de responsabilidade fosse tamanha que realmente teria aparecido na minha frente drogado, sabendo que eu era a única pessoa em todo este centro-oeste de merda que poderia fazer alguma coisa por ele, torná-lo um escritor de fato, porque seria sua primeira publicação; mas ali estava o filho da puta provavelmente com o rabo cheio de maconha, porque desde os meus tempos de faculdade eu não via olhos tão vermelhos quanto aqueles. Em todo o DF, eu vou repetir, em todo o DF não há um só editor que aceite contos de jovens sem referências, mas meu sócio estava disposto a arriscar, por isso dei-lhe o cartão quando o conheci numa noite dessas no teatro nacional, estava saindo de lá com minha esposa e ele me abordou perguntando se eu era Augusto Soares, disse que me mostraria uma história de deixar o cabelo em pé, e eu disse apressado "passe no meu escritório amanhã", dei-lhe um cartão e o esqueci até o dia seguinte, no caso, o dia em que segue minha narração e voltando a ela, ele continuava lá de frente pra minha mesa esperando de pé que eu lesse todas aquelas páginas do lixozinho que ele com certeza chamava de "minha literatura" para impressionar os seus amigos. Peguei o volume, sim, e nesse instante comecei a folhear preguiçosamente até ter certeza de que aumentaria sua ansiedade a ponto de fazê-lo dar o próximo passo. Vou tomar um café... espere um pouco.


Desculpe a demora, o que acontece é que as coisas aqui não funcionam como deveriam, entende? Olha, perdão, mas o senhor ainda não me disse qual o seu interesse nesse rapaz. Vamos encurtar a história, certinho? Eu publiquei aquele conto, mas tive que cortar alguns parágrafos que achei desnecessários, e além do mais, tínhamos espaço certo pra outras pessoas com um pouco mais de talento do que esse tal Vinícius Prado. Era uma história sobre um drogadinho igual a ele que perde a namorada num acidente de carro e começa a construir dentro da própria mente um domínio onde ela ainda exista, entende? Algo meio esquizofrênico, mas com um ar até simpático. Imaginem só a minha surpresa em relação ao número das vendas? Vendemos todos os números impressos e eu recebi boas críticas por dar vez aos jovens promissores do DF e isso permitiu um suspirozinho a mais pro nosso lado, certo? Queríamos que o garoto contribuísse para o próximo número, mas então ele sumiu e nenhum dos telefones que tínhamos dele funcionava...


Sim. Eu entendo. Então o senhor está me dizendo que ele faleceu? Isso, assassinado, exatamente, como não foi morte natural. É uma lástima... Realmente. Uma lástima. Acho que poderíamos lançar a versão integral do seu conto no próximo número. Escritores de um conto só não fazem sucesso, mas com o conto seguido de uma nota do editor explicando a situação, a coisa fica diferente, não acha? Pelo menos teríamos mais um outro suspiro, o que, com perdão da palavra, só seria possível pelo último suspiro vindo dele. Sim, claro. Se eu lembrar de mais alguma coisa... Sim, eu ligo. Agradeço a visita, senhor. Espero ter ajudado.




Augusto Soares Pinto, editor e sócio da Revista SOMA.
23 de julho de 2008.

2 comentários:

Cecília disse...

uau.

fernanda jacob disse...

vc escreve lindamente...maravilhoso!